sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Maria, Maria é um dom, uma força que nos alerta!

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Esse é um novo espaço nas mídias da Campanha Ana. E para começar com chave de ouro, conversamos com Maria Clara de Sena: Mulher trans, negra de cabelo afro, pernambucana, com seus 1,92 de altura e no auge dos seu 37 anos de vida. Ela que ao longo de sua trajetória de luta pelos direitos humanos e do grupo LGBT, se deparou, com situações que mexiam diretamente com sua condição enquanto mulher trans. Tem hoje, sua rotina dividida entre reuniões e visitas a unidades prisionais de Pernambuco, a fim de combater maus-tratos e torturas a qualquer pessoa que esteja em situação de privação de liberdade. Se tornou a primeira transexual do mundo a assumir um cargo em um Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura, órgão que atua em parceria com a ONU. Confirma abaixo nossa conversa com ela que luta e resisti cotidianamente para que pessoas LGBTs em privação ou restrição de liberdade tenham sua dignidade garantida.

Equipe Campanha Ana: Como foi para você ser a primeira mulher trans no mundo a compor o cargo de Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura na ONU? Qual o significado disso para as pessoas LGBTs?

Maria Clara Sena: Para mim em particular, ser a primeira mulher Travesti, como eu me denomino e
me reconheço: Como travestir, pelo nome de resistência e de luta que tem esse significado de ser travestir... Foi um tanto quanto revelador! Agente vivi de pesquisa e dados, e eu ser a primeira mulher travestir a compor esse órgão, mostra uma deficiência de que nos ainda não avançamos o quanto devemos avançar. Tem tantas outras meninas travesti e transexual que podem estar nesse cargo como eu... Até têm as *Regras de Bangkok (no seu artigo 25) que diz que todos os órgãos de monitoramento precisam ter uma mulher na sua composição, e digo mais, que precisa de uma mulher travestir e também um homem trans, pois só nos sabemos onde está o problema da nossa população. Haja vista que no mundo inteiro, principalmente onde há violação de direito, sempre tem uma travestir e uma trans sexual sofrendo violência. E ser a primeira travestir mostra que precisamos muito mais, precisamos acordar o mundo para essa realidade... Que somos capazes de tudo, precisamos apenas de oportunidade e de qualificação para estar nesses lugares. Quando eu entrei nesse órgão eu passei por diversas limitações, haja vista que eu vinha de um local completamente vulnerável. Mas hoje consigo ser essa mulher nesse lugar completamente cheio de barreiras, e por isso, consigo agora ganhar um prêmio por esse trabalho que estamos exercendo arduamente.

E.C.A: O seu trabalho hoje é monitorar abusos no sistema prisional. Como isso se deu?


M.C.S: Esse trabalho se inicia no movimento social com o GTP Mais - que é o Grupo de Trabalho e Prevenção positiva - Onde fomos financiado pelo Fundo Brasil de Direitos Humanos com um projeto que visava fortalecer as mulheres travestis e trans sexuais do complexo do Curado, na capital de Pernambuco – Recfie-. Nesse projeto agente fortalecia as mulheres através de diálogos e trabalhos que fortalecessem elas dentro do sistema prisional. Daí, percebemos que o problema era bem maior do que imaginávamos. Já havíamos feito esse trabalho que deu visibilidade para as travestis e transexuais encarceradas, foi quando o GTP teve um assento no comitê do mecanismo de combate a tortura ao qual o Brasil é signatário, e quando abre o edital eu me escrevo e fui aprovada. Nós temos um diálogo com a ONU e somos um órgão autônomo. Foi assim que se deu.

E.C.A: No trabalho que você desenvolve, Vocês fazem esse acompanhamento nos centro de internação de adolescentes? E você tem conhecimento de algum caso de adolescentes lGBTs que sofre ou sofreu abusos nos centro de internação por conta de sua orientação sexual?

MCS: Quando agente fala da população LGBT, precisamos lembrar que é uma população que esta em todos os espaços. Dentro dos locais de privação e restrição de liberdade, como as comunidades terapêuticas, asilos para idosos, FUNASE (Fundação de Atendimento socioeducativo) e etc. Em todos os espaços é um reflexo social, se agente sabe que sobremos violência aqui fora, nesse espaço a violência se potencializa. As comunidades terapêuticas, por exemplo, elas estão tendo um apoio do estado, por que se dizem que são organizações que tem um cunho de resocializar, de cuidar... Sem contar que tem um cunho religioso. O que traz esse problema por que, as mulheres travestis, as mulheres e homens trans tem que entrar nesses locais de “recuperação” como estão registrados nos seus documentos. O que implica que elas e eles são descaracterizados na sua identidade de gênero.
No sistema prisional agente tem um controle por ser um local de gestão do Estado. Mas essas organizações que são privadas, só aceitam com essa condição, de negar sua identidade e assumir a do registro civil, o que se torna muito pior. E no sistema socioeducativo acontece o mesmo, mas por ser um local público agente tem essa atenção. Existe ainda uma deficiência e uma resistência com os agentes socioeducativos no tratamento com essas meninas bastante complicado ainda. Mas agente tem feito um trabalho de qualificação e diálogo para essa população que esta na ponta.


E.C.A: Na sua avaliação, faltam políticas públicas que dêem conta de responder as demandas LGBT nesses espaços? E quais essas demandas?

M.C.S: Eu tenho certeza que o problema não é os locais de privação de liberdade. Nós agora do mecanismo vamos lançar um relatório temático sobre o sistema prisional, mulheres privadas e retidas de liberdade. Agente esta fazendo esse mapa do litoral e do sertão do Estado de Pernambuco e estamos conseguindo provar que problema não acontece no sistema prisional, que o problema é antes. O que agente precisa é de políticas publicas afirmativas. O problema está no estado, na máquina do Estado, e eu digo por quê: Se agente tem uma educação e saúde que funcione e se existe um trabalho paralelo com as famílias, agente vai banir de vez da sociedade a ignorância. A ignorância é a falta de entendimento de quem somos e para onde vamos e o que fazemos enfim... Se tivermos uma educação e saúde inclusiva, agente vai ter como provar em longo prazo, que é possível uma redução do sistema prisional, o desencarceramento vai funcionar, agente não vai ter essa matança que está ocorrendo dentro e fora do sistema prisional. E ai sim, se agente tiver realmente um sociedade inclusiva, agente vai perceber que não precisamos desse sistema prisional, já provamos e sabemos disso. A Lea T modelo transexual) por exemplo, não sofre a violação que eu que venho de base sofri. Ela tem o amparo da família. Agente precisa acordar para essa realidade, quem é que esta sofrendo? Quem é que precisa de políticas publicas? Quem precisa da escola publica? Quem precisa que o Estado funcione? Somos nós de base, pois a falha acontece aqui fora. E o Apoio das famílias nessa luta é muito importante.

E.C.A: Você foi agraciada no ano de 2016 com prêmio Claudia , na categoria políticas públicas. O que isso trás de novo tanto para você e para luta LGBT no Brasil?

M.C.S: Sobre o prêmio... Isso para mim foi como botar o pé na lua, foi algo surreal, eu nunca imaginei nem chegar aos 33 anos de idade... Por que eu vi muitas amigas minhas serem arrastadas e mortas, os corpos não serem contabilizados como travesti ou transexuais, e isso ainda é uma realidade de hoje. E cheguei aos 37 anos fui indicada e ganhei o prêmio... Pronto ganhei o prêmio! Uma primeira travesti a compor um órgão da ONU como eu, ser a primeira travesti a ser indicada ao prêmio e ganhar. Sendo eu preta, periférica, nordestina de uma família desestruturada. Filha de um pai que aprendeu a ler com sobra de papeis no chão, de uma mãe semi-analfabeta que era doméstica e hoje é aposentada, de uns irmãos que trabalham como uns condenados e não se perceber no sistema escravagista, e que me tem como louca! Por que às vezes quero alerta para minha família: Olha o que acontece com vocês hoje isso é violação de direitos humanos. Quando falo isso eles, dizem que direitos humanos são para bandidos, e eles me tem como louca... Por eu ter saído dessa caixa normativa social. E ai eu ganho esse prêmio e mesmo assim não consigo usar esses mecanismos para salvar minha família da degradação social. Mas estou tentando arrumar um jeito de dizer para eles que esse prêmio não é meu, é nosso! Algumas pessoas se reconhecem nesse prêmio, mas a maioria que agente quer acessar não conseguem sentir-se contempladas nessa premiação. Agente precisa entender que o que as pessoas sofrem é muito duro ainda, é uma realidade que eles precisam acreditar numa mentira para poder saciar e viver. É o que eu vejo ainda deste prêmio. E para a população LGBT também ainda existe um distanciamento. E agente está convocando elas para realidades das coisas, qual o papel das pessoas LGBT’s dentro desse bojo. Existe uma resistência por que elas sofreram muito e sofrem pela realidade do Brasil e elas muitas vezes não querem participar desse movimento, e nem querem acreditar que elas são um objeto de transformação de vida, digo delas e de quem precisa que elas se fortaleçam.

E.C.A: Agora em janeiro se comemora o dia da visibilidade Trans, por que é importante ter um 
dia especifico para as/os trans? 


M.C.S: O dia da visibilidade trans tem tudo haver isso. O dia 29 de janeiro foi escolhido
pelo 
movimento social como esse dia. É uma necessidade. É o dia que vamos dizer: Nós existimos, ocupamos nossos espaços, morremos, somos presas, somos gente como qualquer outra pessoa. E aí agente vem gritar nesse dia que o Estado e a sociedade nos reconheçam. Essa é a importância desse dia. Aqui em Pernambuco agente tem a semana da visibilidade Trans, e acho se suma importância chamar a participação da população para se juntar a gente. Acredito que agente precisa acordar para certos detalhes dentro dos movimentos sociais. Existe a segregação da segregação, esses fragmentos não fortalecem aquilo que agente busca, a igualdade. E a ideia é justamente essa. Tentar dialogar e quebrar alguns conflitos, principalmente os conflitos internos. Quando agente consegue quebrar esse conflitos, vamos perceber que o outro é tão importante para nós, quanto nós somos importantes para nosso mesmo. Axé. 

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