sexta-feira, 3 de março de 2017

Menina ou menino? Não, são interssexuais!



Conversamos esse mês com Thais Emília de Campos. Mãe de 3 filh@x. Casada. Doutoranda na Unesp. Educadora Sexual/Sexóloga e Psicopedagoga. Ela luta pelos direitos humanos desde muito pequena. Foi na gestação do seu terceiro filho que ela se deparou com as questões que cercam as pessoas intersexuais. Ela é Administradora do Grupo no Whats "Direitos das Crianças Interssex", do grupo no facebook "Mulheres Aflitas- Maria da Penha" e da página Thais Campos – Sexóloga, e vive em São Jose do Rio Preto. Veja abaixo nossa conversa com ela.


Equipe Campanha ANA: Thais nos conte um pouco sobre você: Relações profissionais, de militância, enfim o que achar que é interessante compartilhar.

Thaís Emilia de Campos: Não sei como me descrever bem, mas nunca me adequei a esse mundo heteronormativo e sempre me identifiquei com a luta por direitos iguais em diferentes grupos. Desde criança. Com quatro anos eu já estava alfabetizada e ao mesmo tempo questionava tudo, não era uma criança fácil de lidar. Como por exemplo, por que meu irmão poderia fazer algumas coisas e eu não por que era menina. Então eu sempre questionei isso desde serviço domestico ser feito mais pelas meninas do que pelos meninos. Na minha trajetória eu fiz magistério depois psicopedagogia, por que buscava na verdade a questão da educação “especial”, mas foi no mestrado que fui estudar psicologia social e estudos sobre preconceitos e sexualidade que me identifiquei com que buscava. Foi quando me despertei para além da educação de pessoas com deficiência, me despertei para os grupos LGBTI, de gênero que envolvem as questões da sexualidade. Eu percebi que sempre fui feminista e nunca tinha me dado conta disso. E foi nos estudos que também me dei conta da dimensão de violência que eu sofria no meu antigo casamento.. Eu percebi que o estudo empodera as pessoas e faz com que agente consiga romper e parar os processos de violência.

Equipe Campanha ANA: Thaís, qual sua vivência com pessoas intersexuais?

Thaís Emilia de Campos: A minha questão de militância pelos direito dxs interssexuais começa com o nascimento do meu bebê, foi quando eu me despertei para essas situações. Eu vinha também me envolvendo com as questões LGBTI, e mesmo fazendo mestrado na UNESP eu nunca tinha escutado sobre a questão intersexo. Ou quando era citado, era como se fosse um grupo muito pequeno... Com menor importância sabe?... Quando eu entrei no doutorado também pesquisando as questões da sexualidade, eu fique grávida, e de uma gravidez não planejada em meu novo relacionamento. Fui fazer uma ultrassonografia na terceira semana de gestação e apareceu uma alteração no bebê, cardiológica, depois foram feitos outros exames com mais semanas de gestão e ai apareceu uma provável microcefalia e cardiopatia (é um problema na estrutura do coração presente no nascimento). Ai foi decidido fazer uma ressonância fetal e nesse exame o resultado apareceu que ele não era menino mais, era um bebê com sexo ambíguo, que poderia ter um clitóris aumentando pois, não visualizavam os testículos. Mas eu não estava preocupada com essa questão, eu estava preocupada com a vida do bebê, por que queríamos o bebê. No quinto mês de gravidez foi sugerido pelos médicos a interrupção da gravidez por má formação fetal. Nós estávamos preocupados com a vida dele e decidimos não interromper o que queria era que ele vivesse, esta preocupada com as questões do coração e do cérebro e não se ia ser menino ou menina. Os médicos queriam que ficássemos desesperados e ficavam questionando a nossa tranqüilidade com todo esse diagnóstico.

E.C.A: O Bebê nasceu bem? Houve algum impedimento vindo da equipe médica?


Thaís:  No planejamento do parto foi  orientado  pela equipe  médica  que não fosse feita a cirurgia cardíaca,
pois só seria feita  esta cirurgia  se o bebê não tivesse nenhuma outra má formação associada. Eu disse para ele que a vida do meu filho importava e então anotaram no prontuário que fosse tentado pela vida o quanto fosse possível. Depois de meses de luta eles resolveram vestir a camisa e fazer algo pela vida do meu filho. Eu achei um pensamento meio nazista, ah se eu tenho um problema e uma síndrome associada é melhor matar? Eu questionei ao médico se ele sofresse um acidade e ficasse deficiente seria melhor morre? Se ele tivesse um filho nessas condições? Foi a partir desse questionamento que eles resolveram vestir a camisa. O Bebê nasceu de Cesariana, respirou sem oxigênio, nasceu com a cabeça do tamanho normal , chorou e toda a equipe médica ficou olhando com a cara de “ué?” Nasceu com pênis sem o testículo e mesmo assim foi para observação cardiológica. Eu tive que assinar três termos de pesquisa, pois ficaram chocados por ele ter nascido tão bem. Fizeram vários exames, e ele tem sim cinco problemas cardíacos graves, hoje faz uso de medicação e não precisou operar. Dentro dos exames realizados começaram desesperadamente achar os testículos da criança e não acharam nem o testículo, nem ovário e nem o útero. Ele só tem o pênis. Para a equipe medica isso é uma grande preocupação, para eu e meu esposo não. Inclusive no hospital o pessoal perguntava se era menino ou menina e agente respondia, não sabemos e todo mundo ficava chocado pela nossa naturalidade com a situação.

E.C.A: A Lei de Registros Públicos - Lei 6015/73 da o prazo de 15 dias após o nascimento da criança exigindo, para tanto, a indicação do seu nome e sexo como você avalia essa urgência da lei ?
Thais: Nossa postura de queremos que ele fosse o que ele era, deixou os médicos malucos. Para minha surpresa, o que me deixou horrorizada e chocada, foi quando me deram a declaração de nascido vivo, e um monte de papel que não servia para nada, pois, para fazer o registro civil, não podiam me dar à declaração, e disseram que não podiam por que não dava para preencher todas as lacunas, por que o sexo do bebê é indefinido e no sistema digital, só tem masculino e feminino e se tiver faltando algum item o sistema não aceita registra o bebê. Eu achei um absurdo. Então fui
pesquisa e vi varias matérias falando que não é possível e que só na Alemanha e na Austrália era possível registra. Entrei em contado com a promotoria e eles me confirmaram a mesma coisa, que não era possível, que tinha que esperar fazer um cariótipo e ver qual o resultado que ia dar. Perguntei aos médicos, se o cariótipo der alguma síndrome sexual como que fica? Responderam-me que eles iriam optar por ser menina e registrávamos como meninas, pois é mais fácil realizar a cirurgia para ser do sexo feminino e você educa como menina. Eu achei a coisa mais imbecil que já ouvi na vida.

E.C.A: Quais os impactos disso na vida e nos direitos das crianças?


Thais: As implicações desse não registro era que meu filho não ia poder ter carteirinha de registro do SUS, isso para uma criança que tem problemas cardíacos é grave. E mesmo para aquelas que não têm, pois isso cerceia os seus direitos mais básicos. Inclusive, eu não ia ter direito a licença maternidade, pois não tinha como eu provar que tive um filho. Parecia que o que eu estava vivendo não existia. Fiquei me perguntando que loucura, pois para pessoa existir ela precisa ser defina pela sua genitália? Eu trabalhei no hospital do câncer e tem pessoas que tem câncer no pênis e às vezes é preciso a retirada, ou seja, essas pessoas deixam de exigir? Fizeram uma declaração no receituário da existência do meu filho, e era esse o papel que eu andava com ele. Isso é muito ruim, pois além da questão dos direitos básicos, você esta ali querendo registrar seu filho que você lutou tanto por ele e não pode.


E.C.A: E ele já foi registrado?


Thais: Com dois meses de vida, saiu o cariótipo dele com o resultado de 46 XY falando que é do sexo masculino, só então pudemos registrá-lo. Decidimos colocar um nome neutro Jacoby que atende aos dois gêneros. Mas isso foi à base de muita pressão que fiz. O SUS não faz, por isso que eu questiono todos esses procedimentos posto pelo governo, por isso que tem gente que chega há completar seis, sete anos sem registro. Depois de muitas semanas, o convênio particular que eu pago aceitou fazer, eu tive que fazer um acordo para enquanto o registro não saísse ele pudesse consultar
através da minha carteirinha, desde que eu comprometesse a pagar os meses atrasados do convênio que meu filho Jacob não podia ser meu dependente devido ao registro de nascimento. Eu fiquei pensando nas famílias que vem para cá sendo esse um hospital publico de referência para caso de complicações na gravidez, vão voltar depois de algum tempo para pegar o cariótipo? Vão ser crianças no interior do Brasil sem registro. Sem contar as varias situações de preconceitos que tanto as crianças como as famílias passam.

E.C.A: Essa situação do registro de nascimento, força as famílias a urgência de reparações cirúrgicas naqueles que nascem sem um sexo claramente definido?

Thais: Eles forçam sim a cirurgia, eu fiquei pensando nas famílias simples com poucas condições e que dependem única e exclusivamente do SUS. Ou em família religiosas ou de outras áreas que não tem muita informação sobre as questões que envolvem a sexualidade. Desde o inicio eu senti que eles forçam sim, mas a postura da agente de ser muito firme de não fazer, a não ser que fosse algo que o colocasse em risco, por exemplo, um coração que esta em risco opera, agora um órgão genital não esta entupindo a urina e nem trazendo complicações para a saúde como paralisar um rim, não há necessidade só por estética. Já estávamos decido que ele iria ser o que ele é não íamos fazer nenhuma cirurgia corretiva, pois eram o que os médicos queriam fazer uma cirurgia para ele ser menina. Através de grupos de mídia sociais eu fui me aproximando a pessoas que também vivenciam essas situações. E percebi que há muitas historias de violência. E isso mexeu muito comigo, e tudo isso os médicos aproveitam dos pais estarem abalados, de estarem fragilizados quando o bebê nasce. Do emocional, do social enfim... Tudo isso fez com que eu começasse essa luta logo pelo registro, porque esse bebês perdem direitos, mas não só pelo direito de registro, mas de deixarem elas crescerem do como elas são.

E.C.A: Thais, como podemos quebrar essas barreiras do discurso social e médico de que é preciso identificar as pessoas a partir de um gênero (masculino ou feminino)?

Thais: Essa questão é muito difícil. Todo esse processo que vivi, me fez ter uma noção mais concreta da realidade Intersexual, fico pensando que ainda existe muitas outras violações de direitos que acontecem que não tomamos conhecimento. Para quebrar com essas barreiras eu acredito que a educação sexual devia ser presente na escola, não como tema transversal, biológica e patologizante, deveria abarca os aspectos psicossociais e biológicos, culturais e sociais. Isso deveria vir desde a primeira infância. A única forma que vejo hoje de quebrar esse padrão binário de homem e mulher. Acredito que a partir da visibilidade, também é possível quebrar com estereótipos e as pessoas perceberem que são pessoas.

E.C.A: Na sua concepção o que as pessoas intersexuais colocam em questão na nossa sociedade?
Thais: Uma frase resume muito isso dita pelo Ernesto que vi esses dias. “Ter nascido num corpo intersexual me fez aprender que pessoas são pessoas”. Essa questão do respeito o que mais importa é ter amor e ser enxergado com filho, como sujeitos e devem ter o direito a uma certidão de nascimento, de existir, de não serem mutilados ao nascer e devem ter os mesmo direitos que outros independente do seu sexo.


Bebê exemplo de superação 






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