Aroma Bandeira é feminista, cineclubista,
está sendo educadora social, pretende ser anarquista, é uma pessoa não-binária,
bissexual e militante LGBTQ. Para Aroma Bandeira cada lugar desses representa
uma construção em mim, não foi me dada a priori. Aroma foi se observando, se
investigando, e daí construído os seus lugares que tem como referência.
Campanha
Ana: Você é uma pessoas que se considera não binaria? E a partir de
quando você começou a se reconhecer nesse lugar?
Aroma Bandeira: Sou uma pessoa não-binária. Talvez eu seja
desde sempre, como todas as identidades de gênero. Mas há uma grande diferença:
quando eu nasci, as pessoas não disseram isso. Me jogaram numa caixinha de
"menina", e parecia somente haver uma outra, de "meninos".
Por algum tempo na minha vida eu não pensei muito sobre isso. Eu tinha uma vida
de criança em que não era necessário "se afirmar". Uma vida
privilegiada, talvez. Andréa, com quem eu vivia, não me obrigava a chama-la de
mãe, e eu ainda não chamo, chamo-a pelo nome, e a respeito muito. Ela é mulher
cis e militante marxista, e achou engraçado quando a primeira gíria que eu quis
aprender foi "cara". -Nossa, cara, a
festa foi super legal. Afinal,
havia muito da cultura norte-americana onde todos/as são -man. E mesmo quando
eu preferia me vestir com roupas folgadas, bermudões e blusões, eu saia junto
aos meus primos meninos nas ruas cantando “Vamos amigos, lute” (Edson Gomes,
1995). Eu tinha 10 anos, era tudo muito possível e, como eu deixava que a
minhas tias me colocassem brincos com lacinhos de fita de cetim, ninguém ligava
muito para o que eu estava vestindo. Então eu pude ser sem pensar. Mas ai, com
a adolescência, vieram as pressões. Não tanto pelas roupas, mas cadê os
namoradinhos. As tias não me perguntavam cadê a namoradinha, e eu percebi só aos
22 anos que as queria também uma menina, numa festa, me conduziu pela mão e eu
queria que ela nunca mais me largasse. Os namorados, desde os 15 me permiti
tê-los. Eu estava num colégio no centro da cidade, aprendi a beber e ir a
festas na rua com um cara, um grande amigo, negro e conhecedor de todos os
picos e amigos, com quem fiz sexo e parceria. E ele aceitava a minha regra: não
havia penetração. Eu não lhe expliquei porque não precisava, ele
me respeitava e a gente se amava. Mas com o próximo, aos 17, eu tive de dizer e
explicar: penetração era para garotas, e eu não era uma garota. Nesse momento
eu alternava entre roupas compradas na parte feminina e masculina das lojas de
departamento. Eu usava os cabelos compridos, sem muito volume, mas eu sabia que
não era uma garota. Vergonhosamente eu precisava dizer que eu não tinha um
pinto. Então eu estava ali, tirando a roupa para garotos e eles não podiam
achar meu pinto. Quis explicar pro namorado dos 17 anos que eu realmente não
era uma garota, que não importava se meu corpo não parecia, mas eu era um menino,
e que não fazia penetração. Ele não me escutou e me estuprou. Eu chorava e
tentava empurrá-lo. Ele chorou quando eu lhe gritei que ele tinha mesmo me
estuprado. E eu tive muita raiva do choro dele. Depois disso eu estava na
faculdade. Aprendi a gostar de penetração, a gozar muito, e a ser militante
LGBT. Eu me considerava um gay, mas não me vestia como um cara. E era tudo
muito confuso, até pra mim. Afirmava veementemente que era m garoto, nem eu
acreditava direito nisso. Eu nem sabia explicar porque insistia sempre nisso,
mas era importante fazê-lo, porque eu ficava muito triste quando permitia que
me chamassem de garota. Nem mesmo de namorada. Me apresentava pelo meu nome, eu
insistia e brigava. E foi nos estudos e pesquisas sobre pessoas trans,
procurando mais depoimentos de caras trans, que eu encontrei o termo pessoas
não-binárias. E tudo se encaixou. Olaf vai te dizer um pouco aqui, se quiseres
escutar:
C.Ana:
O que é binário de gênero?
Aroma: Binário de gênero é um termo para os dois gêneros
normatizados da sociedade ocidental cristã. Quiseram classificar todas as
pessoas entre homem e mulher. Dizer que esta normatização tem relação com as
divisões sexuais é completamente discutível (e inaceitável, na minha opinião):
primeiro porque as identidades de gênero são, em parte, construídas como cada
pessoa vê seu corpo biológico e psicológico, noutra parte, na relação entre o
que a sociedade lhe oferece como parâmetro e o que ela impulsiona e tenciona de
volta. Segundo porque a própria divisão entre dois sexos não é condizente com a
totalidade das realidades dos seres, que estão além de feminino e masculino
somente (quase ninguém fala das pessoas intersexuais, ou seja, que seus corpos
possuem características ditas de ambos os sexos).
C.Ana:
Mas não se nasce com um gênero?
Aroma: Então, não, as pessoas não nascem com um gênero.
Elas se identificam ou não com o gênero que lhes é atribuído, de acordo com as
normatizações vigentes na sociedade. E o melhor seria que as famílias
aguardassem cada criança, em seu tempo, dizer-lhes quem ela é. Muitas
sociedades consideram os gêneros não-binários como válidos. Outras, como a
nossa, vem ignorando sistematicamente esta possibilidade. Dizemos do CIStema,
ou seja, desta sociedade cisnormativa que quer excluir pessoas trans. E isso é
bastante violento, não ter sua identidade reconhecida e ser classificada como
louca, transtornada.
C.Ana:
Qual é a diferença entre uma identidade não-binária e uma identidade binária?
Aroma: A diferença entre ter uma identidade binária e
ter uma identidade não-binária é justamente esta: ser reconhecida socialmente.
Ter o direito de se identificar sem ser taxada de anormal ou louca, de “querer
aparecer”, de inventar histórias. Poder se reconhecer na outra, partilhar
saberes, ter e receber empatia. O sistema que vivemos hoje é excludente. Ele
elege categorias privilegiadas, que tem local de poder nas hierarquias, e joga
todo o resto para a margem, na periferia, e isso acontece também com as
categorias de gênero. Não quero ser representada na televisão a partir do olhar
de homem cis heterossexual branco que ganha recursos e explora pessoas na
fabricação de mentiras que chama de novela. Quero tecer nossos próprios
espaços, nossos canais de comunicação, de trocas afetivas e afetadas.
C.Ana:
Isso quer dizer que sua aparência não é feminina nem
masculina?
Aroma: Quanto as vivências e aparências, cada pessoa
não-binária tem (ou constrói) a sua, da mesma forma que qualquer pessoa
binária. Quando o feminismo pauta que as mulheres têm muitas vocações e formas
– que não são e não querem ser todas padronizadas no ideal romântico de mulher
cis branca magra, por exemplo; isso também cabe às pessoas não-binárias. A
maioria das pessoas não-binárias que conheço transitam entre uma aparência feminina
e masculina e, para isso, usam tanto roupas masculinas quanto femininas. Mas
não é verdade que todas tem passabilidade fluida. Por isso, a aparência, a
escolha das roupas é uma preocupação quase sempre jogada às pessoas trans.
Creio que é muito desleal dispor apenas dos padrões feminino e masculino, e
jogar a culpa de não parecer suficiente nas pessoas não-binárias. Quando a
maioria da população nos vê nas ruas, querem nos encaixar nas caixinhas
predeterminadas de gênero, às quais não pertencemos e muitas vezes nem
escolhemos.
Veja também o boletim da campanha Ana com essa temática
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